segunda-feira, 3 de julho de 2017

De Russas para o mundo

Resultado de uma parceria da Secretaria de Audiovisual do Ministério da Cultura (SAv/MinC) com a Agência Nacional do Cinema (Ancine), o Edital Longa BO Ficção já contemplou 38 filmes de baixo orçamento (daí a sigla) com recursos financeiros para que estas produções pudessem ser realizadas. Este ano, 10 longas foram selecionados para receber o incentivo e, dentre eles, está “Pacarrete”, do cearense Allan Deberton.
Embora o cineasta já tenha dirigido diversos curtas premiados – tais como “Doce de Coco” e “O Melhor Amigo” – este é o primeiro longa em que ele atua como diretor, um projeto engavetado há cerca de dez anos, mas responsável por lhe fazer seguir adiante na carreira do cinema.

Sendo o diretor natural de Russas, a 165 km de Fortaleza, “Pacarrete” funciona como um registro histórico da pequena cidade interiorana e, baseado em fatos reais, conta a história de uma icônica moradora do lugar, que gostava de ser chamada de Pacarrete.
“Quando as pessoas de Russas falam dela, costumam associar a uma pessoa louca porque ela era muito diferente. Se vestia diferente, falava diferente. Parecia uma francesa perdida no Interior”, declara Allan, definindo a personagem como uma heroína às avessas. “Heroína porque ela era muito à frente do seu tempo. Tinha muito bom gosto, era bailarina e sua arte era o que lhe incentivava a enfrentar as adversidades, como o preconceito”, pontua.
Personagem
Pacarrete teve uma longa vida – nasceu em 1912 e veio a óbito em 2004, aos 92 anos. Tinha o sonho de ser bailarina profissional, abrir uma escola de dança no Interior e promover as artes em sua cidade natal. Entretanto, esses sonhos acabavam por ser contraditórios ao município conservador, que crescia de forma desordenada e deixava a cultura em segundo plano.
Além disso, a protagonista era extremamente politizada, dizia ter viajado bastante e afirmava ser amiga de grandes maestros e professores de dança. “Mas quando ela fala desse passado e você vê a imagem da protagonista, você não consegue acreditar. Porque ela parece uma pessoa de rua”, explica Allan.
Para o diretor, Pacarrete veio a se tornar um grande “mito” de Russas, mas tem sido esquecida por muitos. “Eu convivia com ela quando era bem jovem, ainda fazia o Ensino Médio. Mas as pessoas falavam da palavra ‘pacarrete’ como se isso significasse ‘louco’. Elas diziam ‘ei, deixa de ser pacarrete!'”, relembra Allan.
A motivação para conhecer a personagem a fundo veio apenas quando o cineasta conseguiu libertar-se de todas as ideias e preconceitos que rodeavam a mulher.
Assim, Allan descobriu uma personagem forte, que não se deixava ser injustiçada por conta da idade ou do gênero e lutava veementemente por seus direitos.
Produção
O apelido pelo o qual ela gostava de ser chamada, aliás, vinha da palavra francesa “pâquerette”, que significa “margarida”, e era o nome de uma personagem que havia interpretado no ballet, quando mais jovem. “Desde quando eu fazia faculdade de cinema, em 2007, voltava de férias pra Russas e captava vídeos de vizinhas dela, senhoras com quem conversava, conterrâneas”, recorda o diretor. “Eram testemunhos de quem a Pacarrete era na vida real”, completa Allan, ressaltando ainda todos os anos que passou maturando o projeto, cuja trajetória de elaboração foi longa.
“A produção vai levar em torno de um ano e meio ou dois. A aprovação no edital do MinC dá uma acelerada no processo no sentido de amadurecimento do roteiro, definição do elenco e pesquisa de locação”, afirma Allan, estimando que as filmagens tenham início no segundo semestre de 2018.
Entretanto, o papel de Pacarrete já foi atribuído à atriz Marcélia Cartaxo, que se destacou principalmente por sua atuação na adaptação cinematográfica do livro “A Hora da Estrela” de Clarice Lispector.
Acesso
Para o diretor, iniciativas como o edital do MinC são oportunidades de criar, inovar e experimentar. “Os filmes contemplados, muitas vezes são bem sucedidos em festivais importantes e acabam representando o Brasil em várias competições internacionais, levando a cultura brasileira para fora”, comenta Allan, destacando ainda a importância de ações de difusão do cinema brasileiro.
Tendo vivido até seus 18 anos no Interior, o contato que o cineasta tinha com os filmes restringia-se, basicamente, aos clássicos norte-americanos e longas de artes marciais que chegavam ao cinema de rua que existia em Russas.
“Então a minha formação era mesmo esses filmes e também muitos da ‘Sessão da Tarde’. Quando entrei na faculdade de cinema, fizeram foi rir de mim. Porque todo mundo tinha referências estrangeiras e eu tinha ‘Goonies’, ‘Tubarão’, ‘Lagoa Azul’?”, lembra Allan, entre risos.
Quando passou a atuar como curador de festivais de cinema, percebeu que oa produção brasileira tinha sobre o público um efeito positivamente diferente das estrangeiras. “A plateia se encontra na tela, ela não apenas se identifica com as histórias. Porque o cinema nacional tem muito disso, por se tratar da nossa realidade”, pontua, ressaltando a importância de fazer com que as pessoas tenham, de fato, acesso aos filmes, especialmente aos formatos de curta-metragem – que costumam marcar o início da carreira de muitos cineastas.
Atualmente, Allan está atuando como produtor de uma série de TV e um longa-metragem, além de buscar oportunidade para transformar seu curta “O Melhor Amigo” em um longa. Em suas produções autorais, é possível identificar personagens inquietos que buscam uma transformação, muitas vezes desconhecida por eles mesmos.
“Eles costumam ficar no limiar entre a passividade e a atitude. E acho que a gente tem muito disso”, afirma, sempre buscando aproximar-se do público brasileiro, sem deixar suas raízes de lado.
Diário do Nordeste

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